48 ANOS DO GOLPE
Mortes à
sombra dos quepes
Texto postado originalmente no sábado, 31 de março de 2012
Em trechos inéditos de um depoimento histórico, o
ex-presidente Ernesto Geisel defende a tortura e confirma que o Exército matou
Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho.
Ernesto Geisel não se recusou a tratar de temas cruciais como
os enforcamentos nas prisões em 36 horas gravadas pelos historiadores.
A poucos dias do anúncio dos
nomes da Comissão da Verdade responsáveis por desvelar os segredos guardados
nos porões da ditadura militar (1964-1985), um pouco das histórias escondidas
pela repressão foi trazido à luz por uma entrevista concedida em 1993 pelo
general Ernesto Geisel ao Centro de Documentação e Pesquisa (CPDOC) da Fundação
Getulio Vargas (FGV). Quarto presidente a ocupar o Palácio do Planalto depois
do golpe de 31 de março de 1964, o “Alemão” confirmou que o regime à época não
só praticava a tortura, como foi o responsável direto pelas mortes do
jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manuel Fiel Filho, em 1976.
Geisel chegou a confirmar aos historiadores Maria Celina D’Araújo e Celso
Castro que, ao contrário da versão oficial difundida à época, Fiel Filho foi,
sim, morto por militares: “Num fim de semana, ele (o então comandante do
Exército em São Paulo, general Ednardo D’Ávila Mello) não estava em São Paulo e
mataram o operário”.
O material recolhido pelos
pesquisadores, e que deve ser analisado pela Comissão da Verdade, reúne mais de
36 horas de gravações que traçam um panorama da história recente do país. Parte
já foi publicada no livro Dossiê Geisel, mas vários trechos permanecem inéditos
— como a confissão do assassinato de Fiel Filho pelo Exército. Maria Celina diz
ao Estado de Minas que, mais importante do que os depoimentos dos comandantes
militares coletados pela instituição — que encerram um ciclo até porque muitos
morreram —, é avançar na reconstituição dos aparelhos de terror do Estado.
“Os militares, inclusive Geisel,
defenderam a repressão, mas o regime de terror de Estado teve participação
ativa da mídia e de empresários. Essa é a história que falta levantar. Espero
que a Comissão da Verdade avance nesse sentido”, pressiona Celina. Geisel,
explica ela, tentou driblar e desmantelar a esquerda e a extrema direita
durante o seu governo. “Teve êxito no primeiro combate, pois a esquerda se
desmantelou, mas a extrema direita se manteve ativa e operante até o atentado
no RioCentro, em 30 de abril de 1981, durante o show do 1º de Maio”, esclarece.
Faltaria ouvir, portanto, empresários que estão vivos e podem esclarecer o
funcionamento das masmorras.
“A sociedade que participou dessa
repressão precisa e deve ser ouvida, como ocorreu na Alemanha pós-Hitler e como
ocorre hoje na Espanha em relação à ditadura de Franco.” Celina está convencida
de que, assim, a história será resgatada e de que a anistia estará em xeque e
poderá ser revista. “O governo do general João Baptista Figueiredo foi o
governo dos órgãos de inteligência e o texto da Lei de Anistia levou em conta
essa realidade. ”A historiadora não vê esse resgate da memória como sinal de
revanche, mas como dever de Estado, em nome da verdade histórica.
Falta de comando Maria Celina
contou que não se surpreendeu na manhã de 1993, quando Geisel defendeu a
tortura, porque “o fez em nome da corporação, do Exército”. Descendente de
alemães, o general, que nasceu em Bento Gonçalves (RS) em 3 de agosto de 1907,
teve formação luterana e guardava profundo respeito à hierarquia. Ao defender a
tortura, tratou de dizer que um grupo de militares aprendeu as táticas na
Inglaterra durante o governo de Juscelino Kubistchek de Oliveira e que, para evitar
mal maior, a tortura se justificava. A confissão, dita em tom seco, tenta
justificar a prática ainda negada pelos militares, e será alvo da revisão
histórica da Comissão da Verdade. “Acho que a tortura em certos casos torna-se
necessária, para obter confissões”, defendeu Geisel aos pesquisadores.
O general, apesar de manter a
visão corporativa da tropa, disse a historiadora, não se recusou a falar de
temas cruciais, como as mortes, durante o seu governo, do jornalista Vladimir
Herzog e do operário Manuel Fiel Filho. Atribuiu os dois enforcamentos nas
dependências da repressão em São Paulo à ausência de comando e diz que o
general Ednardo D’Ávila Mello, do II Comando Militar em São Paulo, teria
abandonado a tropa para atender a convites da alta sociedade de São Paulo. “Ele
ia passear no fim de semana, fazendo vida social, e os subordinados dele,
majores, faziam o que queriam. Ele não torturava, mas, por omissão, dava margem
à tortura.”
Confissões da caserna
Os depoimentos de generais,
almirantes, brigadeiros, coronéis e tenentes tomados pelos pesquisadores do
CPDOC/FGV deram origem aos livros Visões do golpe: a memória militar sobre
1964; Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão e A volta aos quartéis:
a memória militar sobre a abertura, todos coordenados e organizados por Maria
Celina com Celso Castro e Gláucio Soares. Já trechos do depoimento do general
Ernesto Geisel deram origem ao Dossiê Geisel, livro editado pela FGV, que está
esgotado. Apenas para pesquisadores, a FGV franquia o acesso aos depoimentos
fonográficos e à transcrição completa do depoimento do general, morto em 1996.
O testamento em que fala abertamente da vida pessoal e militar e de suas
impressões sobre o Brasil e a política foi revisado, página por página, pelo
próprio general até 1996, quando morreu em 12 de setembro, vítima de câncer. A
filha, Amália Lucy Geisel, também historiadora, foi quem deu aval para a FGV
divulgar o documento.
Carlos Franco
No Conteúdo Livre
Comentários
Já tenho prazer em seguir este excelente blog há muito tempo.
Grande abraço!