A Ressurreição. Por Rubem Alves
“O
Luiz Fernando Veríssimo escreveu uma crônica hilariante sobre a Páscoa. Foi um
diálogo absurdo entre um menino, seu pai e sua mãe, sobre o sentido dessa
festa. A crônica termina com uma observação justíssima do menino. Disse ele:
“Eu acho que ao invés de “coelho da Páscoa” deveria ser “galinha da Páscoa…”
Pois é claro. Todo mundo sabe que coelhos não botam ovos. E todos sabem que
galinhas botam ovos… Confesso minha ignorância: não sei como é que o coelho
entrou nessa estória. Para início de conversa é preciso lembrar que os textos
sagrados não fazem referência alguma a esse animalzinho fofo. Quem foi que teve
a ideia de torná-lo o personagem mais importante dessa celebração cristã?
Certamente um gozador. E para tornar a estória mais absurda, fizeram com que os
coelhos, que não botam ovos, botassem ovos de chocolate… Nos tempos de Jesus
Cristo havia chocolate? Acho que não. Galinhas não são seres poéticos. Na
poesia elas sempre aparecem como bichos engraçados, cacarejantes, de
inteligência curta, cuja única função é botar ovos e serem transformadas em
canja. Assim é compreensível que vocês não gostem da ideia de galinhas de
Páscoa. Eu também não gosto.
Mas poderia ser “pombas de Páscoa”. Pombas são
seres teológicos. Começando com a Arca de Noé. A se acreditar no relato do
Antigo Testamento Noé, para se certificar de que o dilúvio acabara, soltou um
corvo. Confesso que se eu fosse Noé teria adotado um método mais simples. Teria
aberto a janela da arca e esticado o pescoço para fora. Eu veria, então, que a
chuva havia terminado e que as plantas já estavam soltando os seus brotos. Será
que Noé acreditava que o corvo, depois de voar, voltaria para dar um relatório?
Como é que o corvo comunicaria os seus achados? O corvo ingrato não voltou.
Desde então eles ficaram aves de má fama, injustamente. Vendo que o corvo não
voltava e sem se dar conta do método mais fácil que sugeri, ele soltou uma
pomba. Ah! Ave maravilhosa! Voou, viu, apanhou um ramo verde de oliveira, e o
trouxe para Noé! É preciso notar que as oliveiras daqueles tempos
extraordinários deveriam ser diferentes das oliveiras de agora. As oliveiras de
agora certamente estariam mortas, depois de passar tanto tempo debaixo d’água.
Oliveiras não são plantas sub-aquáticas. Foi então que, pelo galho de oliveira
que a pomba lhe trouxera, Noé ficou sabendo que o dilúvio havia chegado ao fim.
Desde então as pombas passaram a ser símbolos teológicos: símbolos de pureza,
símbolos de paz. Uma das telas mais comoventes de Picasso é uma menina com uma
pombinha nas mãos. De fato as pombas têm um jeitinho de mansidão. O que não
acontece com os corvos negros de bico torto. Bom para os corvos, mau para as
pombas. As pombas passaram a serem usadas como aves a serem sacrificadas no
templo pelas razões mais incríveis. Se não me falha a memória as mulheres,
terminado seu período menstrual de impureza, deveriam sacrificar pombas no
templo para se purificarem. Pobres pombas! O templo era uma sangueira. Quem
quiser saber mais sobre a sangueira do templo que leia o livro de Saramago, “O
evangelho segundo Jesus Cristo”.
Os corvos, pela esperteza do primeiro corvo
que não voltou, ficaram livres desse triste destino. Vem então o Novo
Testamento que sacraliza definitivamente as pombas, ao relatar que o Espírito
Santo é uma pomba. Sobre isso leia-se o poema de Alberto Caeiro em que ele
conta como Jesus voltou à terra, tornado outra vez menino. É lindo. Brincadeira
de lado, o embaraço dos pais e a pergunta do menino revelam a confusão que
marca essa festa. Ninguém sabe direito o que é que está sendo celebrado. E,
para dizer a verdade, acho que são bem poucos aqueles que fazem alguma
celebração. Antigamente semana santa era coisa séria. Lembro- me da procissão
do enterro, os panos roxos, a banda de música tocando a marcha fúnebre de
Chopin, as matracas, as mulheres mais piedosas carregando pedras na cabeça,
como penitência… Isso mesmo: as mulheres carregavam pedras na cabeça. Como é
bem sabido, Deus gosta de ver os seus filhos e filhas sofrer. Isso para não
dizer da quaresma que a antecede, tempo em que as hostes do mal, demônios de
todos os tipos, assombrações, mulas sem cabeça, almas penadas, ficavam soltas e
todo mundo tinha medo de sair à noite. Sempre havia alguém que relatava, pela
salvação da mãe morta, que havia visto uma mula sem cabeça numa encruzilhada à
meia-noite. Meia noite era a hora do medo. E no escuro ouvia-se o zunido
sinistro dos berra- bois. Semana Santa era um tempo metafísico, entre o céu e o
inferno.
Agora é diferente. Páscoa é domingo, pé de cachimbo, cachimbo é de
barro, bate no jarro, jarro é de ouro, bate no touro, touro é valente, chifra a
gente, a gente é fraco, cai no buraco, buraco é fundo, acabou-se o mundo…
Páscoa é fim de semana santa, feriado de três dias, a praia está esperando,
hora de se preparar para a viagem… Contou-me um sacerdote da Igreja Ortodoxa
Russa que lá a Páscoa é uma grande festa. O comunismo não foi capaz de destruir
a alma do povo. Pela manhã as pessoas saem pelas ruas e se cumprimentam
dizendo: “Cristo ressuscitou!” E o outro responde, com uma risada: “Sim, ele
ressuscitou!” ( A obra sinfônica de Rimski-Korsakov “A grande Páscoa russa” é
linda”. E agora percebo que faz muito tempo que não a ouço. ) . Entre nós, país
onde 99% das pessoas acreditam em Deus ( acreditam porque acham que, se não
acreditarem, é capaz de ele, Deus, enviar algum castigo… ), a Páscoa é como uma
casca de cigarra presa no tronco de uma árvore. Vazia. Morta. Não tem nada lá
dentro. Mas já foi o corpo de um ser vivo que, cansado de ficar preso na casca,
criou asas e voou. A Páscoa, com seus ovos de chocolate, é celebração
inconsciente de um tempo que não existe mais, tempo em que se acreditava. Os
ovos de chocolate, vocês sabem, são tão ocos quanto as cascas de cigarra…
Na
tradição cristã mais antiga a semana santa era um teatro, o drama da vida
dentro de uma casca de noz. Teologia mínima. Duas cenas apenas. Primeira cena:
a morte e o seu horror parecem triunfar. Segunda cena: a vida sai do túmulo de
pedra, deixando-o vazio como uma casca de cigarra. A Adélia diz: “De vez em
quando Deus me castiga, me tira a poesia. Olho uma pedra e vejo uma pedra…” Tem
gente que ouve o canto das cigarras e ouve apenas o canto das cigarras. Tem
gente que fala Páscoa e só vê ovo de chocolate. Pensam na ressurreição como
algo aconteceu, faz muito tempo, num lugar distante. ( Impossível. mortos não
ressuscitam. ) E pensam em algo que acontecerá de novo num tempo distante,
muito longe, no futuro ( Impossível. Mortos não ressuscitarão.). Mas a poesia
não conhece nem o passado e nem o futuro. O passado sobre que a poesia fala é
presente na memória e nos sentimentos. O futuro sobre que a poesia fala é
presente na esperança. Assim os poemas da ressurreição falam sempre do
presente. A Morte é agora. Nós somos o túmulo. “Quem anda duzentos metros sem
vontade anda seguindo o próprio funeral vestindo a própria mortalha…’ Muita
gente morreu e não percebeu.
Mas a Ressurreição pode acontecer também agora.
Tenho, no meu escritório, uma tela de Piero della Francesca ( 1410 – 1492 )
chamada “Ressurreição”. A pedra do túmulo corta a tela em duas partes. Na parte
de cima, com seu pé sobre a pedra, o Cristo ressuscitado. Na parte inferior,
encostados à pedra, os guardas adormecidos. Perguntam-me sobre o sentido da
tela. Respondo que não sei o sentido da tela. As telas têm muitos sentidos. Eu
só posso dizer os pensamentos que aquele quadro me faz pensar. E digo: enquanto
os guardas da morte estão dormindo, o divino que mora em nós sai do sepulcro.
Sabem disso as cigarras. Caminhando hoje pela manhã na fazenda Santa Elisa eu
ouvi o seu canto. Já haviam deixado suas cascas nos troncos das árvores. Agora
são seres alados. Cantam e voam, a procura do amor…Acho que estão celebrando a
Páscoa…”
Rubem Alves
14/04/2011
Fonte: https://rubemalvesdois.wordpress.com/2011/04/14/1015/?blogsub=pending#subscribe-blog
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