EDITE DE LIMA PEIXOTO MINHA MÃE
“Quando a lama
virou pedra e mandacaru secou, quando ribançã de sede bateu asas e voou; foi aí
que eu fui me embora carregando a minha dor; hoje eu mando um abraço p'ra ti
pequenina: Êta pau pereira que a princesa já roncou; êta paraíba mulher macho
sim senhor. êta pau pereira meu bodoque nem quebrou hoje eu mando um abraço
p'ra ti pequenina. Paraíba masculina mulher macho sim senhor.Saí p'ra lá peste! “
— 64 anos de vida minha
desfez hoje. O que posso dizer para ela num dia como esse? Que viva mais, muito
mais e melhor. Que consiga colher cada dia como se fosse o último. Aprendi, com
Rubem Alves, um pastor herético que gostaria muito que ela amasse também que a
palavra que melhor expressa esse desejo é carpe
die. “Carpe Diem" quer dizer "colha o dia". Colha o dia como
se fosse um fruto maduro que amanhã estará podre. A vida não pode ser
economizada para amanhã. Acontece sempre no presente.
— Sei que mais de meio
século minha mãe viu, sentiu, tocou, enfim, viveu muitas coisas interessantes.
Isso só para falar das coisas alegres vividas por ela. Passou pela roça e aprendeu
muito sobre os seres que por ela transitavam. Conhecia algumas estórias de
trancoso como nos referimos em Pernambuco. Aprendeu sobre o saci, mula sem
cabeça, o curupira e talvez a estória da perna cabeluda. Conheceu porque outros
de sua geração até a minha também conheceram tais personagens. Conheceu frutas
maravilhosas: a pitomba, a laraja cravo, a macaíba, a mangaba, manga rosa e
espada e a melhor de todos: o sapoti. Lembro que gostava da mata e de tomar
banho em rio e em maré. Costuma nos levar para o interior, em Ribeirão na zona
sul canavieira, para a Usina Cucaú e atravessar a mata de Abreu e Lima na
companhia da Comadre Marina. Lembro até que já fomos para a cidade de Bonito,
onde havia bonitas laranjas cravos. Havia um interior que hoje não lembro mais
o nome, onde me perdi e minha tia Maria me achou. Sei que não havia energia elétrica
nessa época e que se usava a lamparina a noite. Que tomávamos água tirada do
fundo de uma jarra de cuia e que colhia e secava-se o café que bebíamos da
plantação local. Posso dizer que compartilhei um pouco do mundo da infância da
minha mãe.
—Quando moça foi para cidade
grande - o Recife. Onde aprendeu a ser feiticeira. Ela certamente não vai
gostar dessa minha referência, mas é verdade. Quem foi introduzida nas artes
culinária como ela foi não podia virar outra coisa senão uma feiticeira. Pois
aprendeu muito a arte de encantar os olhos daqueles que viam o que ela podia
fazer numa cozinha e de seduzir pelo estômago aqueles que tivessem a sorte de provar
dos seus quitutes. A propósito, lembro que uma das formas dela pedir desculpas
quando reconhecia ter cometido erros para conosco era, justamente, fazendo um
almoço caprichado de um jeito que ninguém faz. Só sendo uma feiticeira para
conseguir isso. Outra prova disso, foi ela ter seduzido meu velho pai, o
Peixotão. Só alguém com uma história parecida com a dela para se deixar seduzir
pelos encantamentos dela. Mas isso aconteceu quando ela já tinha se tornado uma
mestre do encantamento culinário e se encontrava trabalhando no comércio que
não deixa de ser uma outra forma de seduzir o outro a comprar o que lhes é
oferecido mesmo quando não lhes é preciso. Eu também conheci esse mundo da
juventude de minha mãe, eu conheci a loja Fortunato Russo.
—Hoje ela é tão religiosa ou
até mais do que fora a vida inteira. Foi por muito tempo uma católica
fervorosa, devota, daquelas de subir o Morro da Conceição em casa Amarela no
Recife. Um morro íngreme prá caramba! Alto a beça, onde há uma gigantesca
imagem da “nossa senhora da conceição” vestida de azul e branco. Tamanha
devoção que me obrigava a caminhar com ela em procissões. A propósito, foi
minha mãe católica que primeira me transformou num protestante. Eu, por muito
tempo, acreditei que eu o havia encaminhado para o mundo protestante. Nada
disso! Pelo o contrário, foi o catolicismo radical dela que me fez um
protestante precoce. Quando, cansado de tanto andar em procissão: xinguei a
santa e ela me ouviu. Fez-me ajoelhar e pedir perdão para aquela estátua em
cima do andor. Fiz sob protesto e com raiva, virei um protestante a partir de
então. Só não sabia usar esse conceito na ocasião. Há, tem mais. O catolicismo
da minha mãe fez ela me obrigar saber de cor sem errar a reza do Pai Nosso e da
Ave Maria. Nossa cartilha era dois quadros retangulares contendo ambas as rezas
divididas em partes com uma ilustração em cada uma. A sala era o lugar onde eu
exercitava a decoreba religiosa. Eu conheci minha mãe católica.
— Mas a jumenta de balaão
falou comigo também. Por caminhos que agora não convém narrar, tornei-me um
protestante. Na prática, hoje a classificação é outra. Para ser “politicamente
correto”, digo que “virei” [ops!] “evangélico” batista. Minha mãe já tinha uma
forte propensão para fortes emoções religiosas e, pouco tempo depois, aceitou
meu convite a ir para a Igreja. Há velhos amigos ranzinza e secularizados que
até hoje dizem que irei arder no fogo do inferno por ter feito essa desgraceira
a minha mãe. Que vou chegar até o último círculo sem a companhia de ninguém no
inferno de Dante. Hoje entendo um pouco do porquê disso. Minha mãe só fez
trocar de camisa religiosa, sem deixar de ser a devota que sempre foi. Traduziu
sua piedade, seu fervor, sua espiritualidade para uma nova linguagem: a dos “evangélicos”.
Foi uma conversão semântica apenas. E não parou. De batista foi se transmutando
a pentecostal. Hoje, se eu não tiver enganado, é da Assembléia de Deus. Está
mais fundamentalista que nunca. A reza fora transformada em oração. Os santos
viraram pastores e missionários, a procissão virou o percurso que ela faz para
ir a pé até a Igreja dominicalmente e a Bíblia substituiu os antigos ídolos. Eu
conheço o cristianismo da minha mãe.
— Mas, minha mãe não se
resume a esses fragmentos de minha memória. Ela não é assim. Essa é a
representação do que ele talvez fosse. Uma aproximação apenas. Por que sua vida,
como qualquer vida, é sempre maior que as lembranças que construímos dela. O
que sei é que ela pode viver muitas coisas boas que superam as ruins com
certeza. Conseguiu o que eu e meus irmãos ainda não conseguimos terminar de
fazer: educar os filhos; vê-los crescer e conquistar o que seus esforços com
erros e acertos permitiram conquistar. Ter uma casa boa e curtir os netos e ser
feliz com o que conquistou junto com meu pai. Ela não é paraibana, é
pernambucana. Soube ser forte quando todos nós precisávamos de sua fortaleza,
nos ensinou mesmo a moda antiga a vivermos e por isso apenas, seu dia deve ser
celebrado. Mesmo fingindo que não gosta de festa de aniversário. Talvez, eu não
sei, mas minha mãe, do jeitão dela, tenha um pensamento parecido com o do Rubem Alves quando “desfez” 70 anos. Nesta
questão. Ele diz: “Estou a ponto de "desfazer" 70 anos, muito embora os
distraídos insistam em usar o verbo "fazer". O fato é que a
celebração de mais um ano de vida é a celebração de um desfazer, um tempo que
deixou de ser, não mais existe. Fósforo que foi riscado. Nunca mais acenderá.
Daí a profunda sabedoria do ritual de soprar as velas em festas de aniversário.
Se uma vela acesa é símbolo de vida, uma vez apagada ela se torna símbolo de
morte. O que não entendo é a razão pela qual os participantes, diante das velas
apagadas, se ponham a bater palmas e a rir, quando o certo seria que chorassem.
Eu prefiro um ritual mais alegre: acender uma vela bem grande, como um bruxedo
de invocação dos anos ainda não nascidos cujo número não sei!”
— Tomara minha mãe, que a
senhora possa aproveitar muito os anos ainda não nascidos do seu jeito mesmo.
Mesmo não sendo tão devoto como a senhora vem sendo, continuo carregando comigo
muito da senhora, que nem a senhora pode acreditar. Eu também sou um devoto
fervoroso, porém por valores e ideais que se utiliza de outras linguagens
diferentes da que a senhora está acostumada. É só prestar atenção um bocadinho
a mais. Por favor, não pense que os fragmentos de memórias escritas aqui sejam
um desabafo. Não é não! Visse? Não foram erros e nem acertos foram vivências.
Talvez os mais gostosos fossem os erros que os acertos. Ser certinho demais é
chato. Eu mesmo lhes digo, se eu pudesse viver mina vida antes dos 44 de novo,
cometeria mais erros. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais
entardeceres. Porque, minha mãe, o que importa é colhermos
o dia. “Carpe Diem". Feliz 64 anos que a senhora desfaz hoje!
Seu filho, Moisés.
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