Valdir Raupp, o Homem de 136 milhões de Reais!
Uma reeleição cara
Valdir Raupp (PMDB-RO): R$ 136 milhões para apoiar a reeleição de FHC?
Texto e reportagem de Lúcio Vaz
O movimento estava intenso no corredor das comissões técnicas, no Anexo da Câmara. Eu passava apressado e encontrei, por acaso, um deputado de Rondônia. Era início de agosto de 1997. Integrante do chamado “baixo clero” do Congresso, o deputado era uma boa fonte, principalmente quando o assunto era fisiologismo. Sabia quanto cada deputado do seu Estado havia recebido para votar em determinado projeto de interesse do governo. As moedas de troca eram, invariavelmente, cargos federais ou verbas para obras no Estado. Mas, naquele dia, ele tinha uma história mais pesada para contar. E o peixe fisgado era maior. Um peixe muito barbudo!*
— Lúcio, o Raupp levou R$ 60 milhões (o equivalente a R$ 136 milhões hoje) para apoiar a reeleição do Fernando Henrique — disse, com os olhos arregalados.
Ele falava do então governador de Rondônia, Valdir Raupp (PMDB), hoje senador, seu adversário político. Procurei saber mais detalhes da história. Haveria prova? E como ele tinha tanta certeza do fato?
— O Raupp teve um encontro com o presidente, em Brasília, e entregou um documento garantindo apoio à sua reeleição. Foi há poucos dias. Você pode tentar conseguir esse documento. O dinheiro vai ser liberado pelo BNDES [“banco nacional dos espertos e sabidos”] para capitalizar a Ceron (Centrais Elétricas de Rondônia), mas vai servir mesmo para financiar obras do governador. Assim, ele garante a reeleição dele também.
A história parecia fechada, além de interessante, mas faltava o principal: as provas. No mínimo, precisaríamos de testemunhas. Fiquei de procurar minhas fontes no governo, enquanto ele tentaria obter mais detalhes com colegas de bancada, já que era de um partido governista. Ficamos de conversar na semana seguinte.
Procurei parlamentares próximos ao governo, mas ninguém acrescentou muito ao que eu já sabia. Encontrei novamente com o deputado, agora no seu gabinete, e expliquei que precisaríamos radicalizar na apuração. Lembrei-me de uma reportagem feita pelo jornalista Fernando Rodrigues, meu colega na Folha de São Paulo, no início daquele ano. Com a ajuda do “senhor X”, como chamou, ele conseguiu gravar conversas de parlamentares do Acre sobre o processo de votação da emenda constitucional que aprovou a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. O deputado Ronivon Santiago, do PFL na época, afirmou que teria recebido R$ 200 mil para votar pela reeleição. O método era radical, mas perfeitamente legal, e ético. Antiético seria vender o próprio voto. E a Folha já havia aprovado o procedimento. Expliquei, então, ao deputado de Rondônia.
— Deputado, ninguém assina recibo nesse tipo de negócio. O tal documento entregue ao Fernando Henrique não vai vazar nunca. O único jeito é gravar uma conversa do Raupp relatando para algum aliado o que aconteceu.
O deputado perguntou se eu estaria falando de um “grampo” telefônico, o que seria ilegal. Expliquei que não seria exatamente um “grampo”, que consiste na gravação de conversas de terceiros. Quando um dos interlocutores grava a conversa, ele pode divulgar o seu conteúdo. Há jurisprudência sobre isso no Supremo Tribunal Federal. Assim, alguém precisaria gravar uma conversa com o governador.
— Mas quem vai gravar? Um aliado dele não vai entregar a fita. E ele não vai contar a história para um adversário — argumentou o deputado repleto de razão.
Mesmo mostrando a dificuldade da operação, ficou de pensar em alguém que pudesse fazer a gravação. Disse que até já tinha um nome em mente. Pediu mais tempo. Duas semanas mais tarde, informou que todas as tentativas haviam fracassado. Ninguém queria assumir o risco do grampear o governador. Propus, então, uma estratégia mais arriscada.
— Precisamos de alguém que já tenha sido próximo do governador, mas que hoje esteja na oposição. Essa pessoa se aproxima dele, ganha a sua confiança e acaba fazendo a gravação.
O deputado achou a ideia excelente, mas faltava encontrar alguém disposto a colocar o guizo no pescoço do gato [barbudo*]. Ele foi atrás do voluntário. Poucos dias depois, chamou-me no seu gabinete e anunciou.
— O cara é o Olavinho. Ele vai fazer a gravação.
Tratava-se do deputado federal Emerson Olavo Pires, do PSDB de Rondônia, filho do ex-senador Olavo Pires, que fora assassinado em 1990 numa emboscada nas ruas de Porto velho. O deputado relatou que Olavinho já havia se aliado de Raupp no início do seu governo. Mas acabou se afastando do governador por sentir desprestigiado pela administração estadual. Agora, estaria disposto a se aproximar do governador para tentar fazer a gravação.
Nas
semanas seguintes, foi feita a reaproximação. Um intermediário enviou sinais de
que Olavinho estaria disposto a conversar com o governador, que ficou animado
com a possibilidade. Deputado de primeiro mandato, o tucano tinha como
principal trunfo eleitoral o prestígio político do pai, que foi assassinado
quando disputava o governo do Estado. Depois de um primeiro contato com o
governador, Olavinho marcou para conversar por telefone, do seu gabinete em
Brasília. Já era início de outubro. Fui chamado e levei um gravador especial,
que grava as conversas de uma forma bastante prática. O sensor é colocado entre
o aparelho e o ouvido do operador. Assim, ele pode, ao mesmo tempo, ouvir e
gravar a conversa.
Todos estavam tensos; Olavinho chegava a suar.
Ou a primeira ligação, informou que o governador esperava pelo contato e
aguardou o retorno. Quando o telefone tocou, ele respirou fundo e atendeu. Era
o governador. Depois de um bate-papo informal, para descontrair, o deputado
entrou no assunto quente, procurando arrancar de Raupp a confirmação do acordo.
O governador começou revelando que teria dinheiro para tocar um programa de
obras gigantesco:
— Acho
que, se eu tocar esse programa de obras, consigo ganhar essa eleição no
primeiro turno.
— E dá
para garantir esse programa de obras, governador? — perguntou Olavinho,
procurando arrancar mais detalhes sobre o financiamento do programa.
— Dá
porque eu vou ter da Eletrobras, do BNDS ,
e mais a privatização do porto, do banco [do Beron?] uns 90 ou 100
milhões (de Reais) com isso. Toco o programa todo em seis ou sete meses. Daqui
a 60 dias, com esse programa de obras, consigo ganhar a eleição no primeiro
turno— relatou Raupp.
— Pelo
o que entendi, da parte do BNDES não existe má vontade. Do governo federal
mesmo, quem está ajudando nisso?
Abriu um sorriso de alívio quando o
governador respondeu:
—O próprio presidente (Fernando Henrique
Cardoso), o próprio presidente já determinou. Eu estive com ele na semana
passada, pessoalmente. Ele já determinou que se fizesse isso o mais rápido
possível. Tanto o presidente quanto o Sérgio Motta. Só faltava fechar o número.
Motta não tinha ligações formais com o
BNDS e não deveria interferir na liberação de recursos para a Ceron, mas
era o operador político do governo FHC.
Olavinho pergunta se o presidente está
“fechado” com o governador.
—O presidente está 100% fechado —
responde Raupp.
O deputado fala sobre o documento que o
governador entregou a FHC, prometendo apoio incondicional a sua reeleição. Em
seguida, pergunta como ficaria a situação de Raupp se o PMDB lançasse candidato
a presidente da República:
— Você
está tranquilo? Mesmo se o PMDB lançar candidato a presidente?
— Ah,não,
já dei a palavra de apoio ao presidente. Só se eles me expulsarem. Mas vão ter
que expulsar o Britto (Antônio Britto, então governador do Rio grande do sul e
também aliado do Planalto). Não há um nome com quem eu simpatize no PMDB.
Concluída a primeira conversa, ouvimos a
gravação, ainda no gabinete, e concluímos que faltava alguma coisa. As
declarações eram fortes, mas seria preciso esclarecer melhor como o dinheiro da
Ceron seria usado na campanha, como isso resultaria em votos para Raupp.
Numa segunda conversa, Olavinho perguntou se o dinheiro não seria “carimbado”
para a Ceron. O governador finalmente explicou como poderia usar o
dinheiro liberado pelo BNDS em benefício de sua campanha. [Não em
benefício do Povo!*].
— Mas
esse recurso do BNDS não é carimbado para a Ceron?— questionou o deputado.
— Não.
Ele vem para a Ceron pagar o ICMS do Estado. A Ceron deve R$ 78 milhões de
ICMS. Enquanto preparam toda a papelada, eles mandam R$ 10 milhões para dar
continuidade às obras. Depois,vêm os outros R$56 milhões—relatou Raupp,
informando que o BNDS liberaria um total de R$ 66 milhões.
O material gravado já era forte, mas
Olavinho pensava em fazer uma terceira gravação. Desistiu da ideia porque
chegou ao governador a informação de que alguém teria gravado uma conversa com
ele. Segundo relato do deputado, Raupp teria telefonado ameaçando
retaliar se o conteúdo fosse divulgado. Havia chegado o momento de publicar
a reportagem.
Por coincidência, o governador estava no
escritório de representação do governo de Rondônia, em Brasília, na véspera da
publicação da reportagem. Telefonei e marquei uma entrevista. Adiantei o
assunto por alto, mas sem dar detalhes. Em seguida, fui até o escritório, no
edifício do shopping Pátio Brasil, ainda pela manhã. Encontrei o governador
tenso, mas muito simpático. Relatei sobre a fita gravada por Olavinho e sobre o
seu conteúdo. Raupp deixou escapar um gesto de irritação, mais com o deputado
do que comigo. Propus fazer uma entrevista pingue-pongue, para que ele
expusesse a sua posição sobre o acordo com o Planalto para liberar os recursos
do BNDES. Ele concordou. Liguei o gravador e comecei pela questão partidária.
—Se o PMDB decidir em convenção nacional
que terá candidato próprio a presidente, como o senhor fica?
—Eu apoiei a candidatura do doutor
Ulysses em 1989, mesmo sabendo que iria perder. Em 1994 o Quércia. Agora, não
vejo no PMDB nomes em condições de vencer as eleições. A minha tese, como a de
muitos outros governadores, é de apoiar o Fernando Henrique e lançar um
candidato (do PMDB) em 2002—respondeu, com a mesma firmeza que havia
demonstrado na gravação feita pelo deputado.
Lembrei, então, que ele tentava, havia
seis meses, sem sucesso, a liberação de recursos para sanear a Ceron
(?*). Somente naquele momento ele
havia conseguido a promessa do repasse do dinheiro para o Estado.
— isso
coincide com o momento em que o senhor leva ao presidente um documento
manifestando apoio à reeleição dele. Não é muita coincidência?— perguntei.
— Não,
não tem nada a ver [ /vêêrrrr/ *].É
normal um governador estar em audiência com o presidente, para pedir auxílio ao
seu Estado. O meu Estado é carente. Não é nada de mais o
governador pedir socorro ao presidente da República. E a minha manifestação de
apoio ao presidente foi feita há mais de dois anos. Pesquisas do estado mostram
que 60% da população quer a reeleição do presidente. O governador está do
lado do povo. [De qual povo ele mesmo se refere? Ao da família dele?*]
Citando outro trecho da gravação,
lembrei que ele havia afirmado que com os recursos do BNDES, iria tocar as
obras no estado e garantir a reeleição já no primeiro turno. [É,…, dizem que um
político assim nunca foi um estadista, pois, um estadista não pensa na próxima
eleição, mas na próxima geração!*]
— Não
seria esse um projeto eleitoreiro?—questionei.
— Veja
bem, qualquer governador quer tocar obras, quer realizar obras sociais, de
infraestrutura. Não vejo nisso um trabalho eleitoreiro. Se a maioria da
população está satisfeita e existe um projeto de reeleição, eu acho normal um
governador se reeleito.
A
entrevista durou pouco mais de meia hora. Raupp apresentou a sua versão dos
fatos, mas não negou nenhum trecho da gravação feita por Olavinho. Retornei à
sucursal da Folha e tratei de redigir a matéria. No meio da tarde, com o
texto principal já pronto, fui chamado na sala do diretor da sucursal, Valdo
Cruz. Ele explicou que o secretário de redação da Folha, Josias de Souza,
não havia gostado da abertura. Entendia Josias que o conteúdo da gravação não
sustentava aquele lide, que vinculava diretamente a liberação de dinheiro ao
apoio à reeleição. Refiz o texto, mas a reportagem continuou embargada. Acabou
não sendo publicada no dia seguinte porque o jornal estava com pouco espaço
naquele dia. A reportagem exigia uma página limpa.
Olavinho achou que o governador havia
barrado a publicação da reportagem. Assustado com a pressão de Raupp
foi à tribuna da Câmara e afirmou que estava sofrendo ameaças de
adversários no Estado. A mesa Diretora providenciou segurança pessoal para o
deputado. Uma equipe de seguranças da Casa passou a acompanhá-lo. Mas o
discurso despertou também o interesse do restante da imprensa. Pressionado,
Olavinho acabou vazando parte do conteúdo da gravação. Disse que o governador
havia trocado o apoio a FHC por R$ 66 milhões a serem liberados para Rondônia.
Acompanhei o deputado o dia inteiro, para evitar que ele passasse mais
informações para os concorrentes. A fita que ele gravou estava comigo. Olavinho
insistia que Raupp havia “derrubado” a publicação da matéria. Assegurei ao
deputado que a reportagem seria publicada no dia seguinte, completa. O
governador realmente telefonou para a chefia da sucursal do jornal em Brasília.
Perguntou se a reportagem seria publicada, mas nada pediu. Ouviu que a reportagem
seria publicada no dia seguinte, o que realmente aconteceu. Com o título ”Governador
acerta apoio e obtém R$ 66 milhões”, tinha uma abertura, os principais trechos
da conversa gravada por Olavinho e a entrevista pingue-pongue com o governador.
Olavinho passou vária semanas sob
proteção policial, até que o assunto esfriasse. No ano seguinte, Raupp disputou
a reeleição, mas perdeu para o pefelista José Bianco. O deputado também não
conseguiu a reeleição. Os dois foram reprovados pelas urnas naquele ano.
Hoje, Raupp é senador por Rondônia.
Nota: *: Acréscimo feito,
a parte, pelo escrevinhador que reproduziu esse texto.
Referência:
VAZ,
Lúcio. A Ética da Malandragem- no submundo do Congresso Nacional. “UMA
REELEIÇÃO CARA”.São Paulo, Geração Editorial, 2005, Pág.86 a93.
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