Evangelização à brasileira
Ao se adaptar às
necessidades locais da sociedade brasileira, as religiões evangélicas vêm
conquistando cada vez mais espaço no país. Em dezembro, a Revista de História
aborda em artigos e reportagem aspectos da ‘fé que seduz o Brasil’
Nashla Dahás
Primeiros evangélicos da Assembléia de Deus de Goiânia. 1936. |
Colonizado e cristão, miscigenado e avesso a
Revoluções, o Brasil evangélico adapta a crença em seus mitos fundadores e difunde
um protestantismo que pretende conquistar o mundo.
Ao final dos
anos de 1950, Nelson Rodrigues tornou conhecida a expressão “complexo de
vira-latas” para falar da suposta inferioridade a que o brasileiro se colocava
diante do mundo. Tratava-se, naquela ocasião, de uma crônica sobre futebol, mas
funcionaria durante muito tempo como um deboche do atraso brasileiro, o país do
eterno futuro, cheio de potencialidades naturais e de “cordialidade”, mas
incapaz de resolver seus problemas mais antigos como o analfabetismo e a fome.
Coincidência
ou não, entre os anos 50 e 70, a população evangélica daria uma salto de quase
70% em relação ao período anterior, acompanhada pela modernização conservadora
durante a ditadura militar, e pela explosão mundial de movimentos sociais em
defesa da liberdade de expressão, dos direitos das minorias e da negação da
guerra. Um por um, os temas da agenda social brasileira e mundial foram
gradualmente incorporados à pregação protestante tradicional: o
pastor abre as portas da Igreja como as de sua própria casa, possui a
autoridade de um pai ao acolher o cidadão mais desamparado pelo Estado e pela
sociedade; oferece-lhe uma família para pertencer, eventualmente emprego e
orgulho próprio, e um objetivo de vida, uma missão: mostrar ao mundo o caminho
da salvação.
Podia ter
dado certo ou não, como ocorre igualmente nos processos históricos e na vida,
mas em fins da década de 1980, a redemocratização no Brasil e a vitória do
capitalismo no mundo, contribuíram com importantes ferramentas: a legítima
liberdade de crença religiosa, o livre acesso aos meios de comunicação e a
consolidação do modelo liberal de sociedade de massa: cada um por si e pelos seus.
Contudo, o
Espírito Santo, ou para os mais céticos, o senso de realidade e de oportunidade
de alguns pastores e igrejas escapou à observação restrita às fronteiras e à
conjuntura, e enxergou o impacto da fragmentação global. Conflitos étnicos,
desemprego generalizado e a desarticulação da família tradicional não desfrutam
mais da opção dos projetos revolucionários, o Estado tornou-se autoridade menos
capaz com o aprofundamento da globalização, e a política é hoje um terreno cada
vez mais desacreditado pelos jovens. Nascidas no dia a dia da batalha que cada
fiel pentecostal trava com a realidade brasileira, explicada pela demonização
de seus mais diversos reversos, as igrejas evangélicas oferecem à América
Latina, Ásia e África uma nova utopia. Sem revoluções, imposição ou violência,
elas agem pela conversão e crescem sempre de baixo para cima, raramente
seduzem as elites nos primeiros encontros, misturam com alguma
facilidade a sua fé aos aspectos mais tradicionais das igrejas predominantes, e
transformam a religião em uma identidade conquistada e vencedora, pois que
escolhida para levar a palavra de Deus aos incrédulos.
Na África e
na América Latina, as proximidades da língua parecem ajudar no crescimento das
igrejas brasileiras, sempre associadas a outros elementos, específicos em cada
país. Pesquisadores apontam que nessas regiões os cultos são realizados em
proporção de 40% na língua local, e 60% em português, atraindo também os grupos
de imigrantes brasileiros.
Na
Argentina, é possível que as sucessivas crises econômicas, somadas ao desgaste
no orgulho das classes médias, contribuam para uma aceitação das igrejas bem
maior do que no Chile, onde o catolicismo ainda é profundamente identificado
com uma distinção de classe. Bolívia, Peru e México apresentam um índice de
crescimento pentecostal marcadamente entre as populações indígenas, para as
quais há um trabalho direcionado por parte de algumas igrejas, e minuciosamente
acompanhado pela SEPAL (Servindo aos pastores e líderes), missão internacional
que avalia e difunde o crescimento evangélico no Brasil há mais de 30 anos. No
site da instituição/Rede é possível ter acesso às chamadas “missões
transculturais”, cujos objetivos variam de acordo com as regiões de destino e a
formação dos missionários. Estes, são atualmente cerca de 600 e incluem
teólogos, professores, antropólogos, administradores, entre muitos outros
espalhados por quase 70 países do globo.
A motivação
mais comum a levar essas pessoas para lugares tão distantes de suas raízes é a
“batalha espiritual”: cada povo não cristão seria vitima de um tipo de demônio
como a pobreza, a violência, a exclusão, o neocolonialismo, o desemprego, a
solidão, etc. Mas entre os horrores contemporâneos, existe ainda uma hierarquia
que alça ao seu topo o islamismo e as religiões orientais. Daí a existência da
chamada “Janela 10-40”; segundo a qual a maior concentração de pessoas do globo
terrestre que ainda não “encontrou Jesus” localiza-se no retângulo que se
estende da África ocidental através da Ásia, entre os graus 10 e 40 a norte do
equador, incluindo o bloco muçulmano e o bloco budista, ou seja, bilhões de
pessoas à espera da conversão.
Ao que é
possível obter de informações nos sites das igrejas como a Universal do Reino
de Deus, e em pesquisas acadêmicas variadas, as missões são estudadas com
bastante antecedência por uma comissão que visita o país ou região de destino e
elabora uma espécie de dossiê avaliando as probabilidades de sucesso, a
legislação local, os trâmites relacionados à existência jurídica da Igreja e,
sobretudo, a cultura local. Contexto nacional, linguagem apropriada, classes e
modos de vida específicos, localização ideal dos templos com vias de acesso e
sem concorrências, compra ou preferencialmente o aluguel de um imóvel com as
proporções adequadas, arrecadamento estimado dos dízimos... A fé evangélica é
também uma empresa de porte multinacional, embora esteja longe de se reduzir a
isso.
Movidas
especialmente pela adesão global de populações pobres, com baixos graus de
instrução, não-brancas, jovens, e mulheres, tudo indica que essas igrejas buscam e
produzem fieis cada vez mais diferentes entre si, marcados por
histórias nacionais e individuais muito particulares, parecidos com a sociedade
em que vivem mas, ao mesmo tempo, sensíveis a um discurso que universaliza
sentimentos velhos conhecidos do povo brasileiro.
Desde a
síndrome de vira latas criada por Nelson Rodrigues, até a opressão sentida
pelas tribos indígenas latino-americanas, agora fortalecidas pelo poder
eleitoral dos evangélicos, a exclusão social, no caso dos imigrantes nos
Estados Unidos, e a diversidade, marca de nossa identidade histórica e
cultural, agora oferecida aos russos, aos chineses, e aos países muçulmanos
mais radicais... Não sem algum custo, é claro.
Para
conhecer o discurso, o impacto cultural e religioso, e as estratégias
utilizadas pelas igrejas evangélicas no Brasil e no mundo, leia o dossiê “Evangélicos,
a fé que seduz o Brasil", capa da Revista de História do mês de dezembro.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/evangelizacao-a-brasileira
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