JUDICIÁRIO QUER EXERCER A CENSURA ARTÍSTICA
Por Celso Lungaretti
Agora
coube a um togado revirar as imundícies da lixeira da História em busca
de tesoura de Torquemada --a mesma que, durante a ditadura militar, foi
empunhada por um bando de indivíduos inescrupulosos, dispostos a tudo
por dinheiro.
Naquele período infame, o paradigma
dos castradores de intelectos foi Solange Teixeira Hernandes, diretora
do Departamento de Censura Federal.
Mas, ao que se
saiba, dona Solange & cia. não se voluntariaram para a vil,
repulsiva e degradante função de censores. Foram escolhidos e não
tiveram a dignidade de recusar, exatamente como os oficiais nazistas que
atentaram contra a humanidade e depois alegaram ter cumprido ordens
superiores -o que não os eximiu de receberem punições exemplares,
merecidíssimas, do tribunal de Nuremberg.
Já o
desembargador Marcelo Fortes Barbosa Filho, da 6ª Câmara de Direito
Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, só obedeceu à própria
(in)consciência ao proibir a dramatização de um acontecimento
trombeteado ad nauseam no noticiário jornalístico, a ponto de ficar conhecido por dezenas de milhões de brasileiros.
À imprensa abutre
é permitido derivar folhetins oportunistas do Caso Nardoni e que tais,
martelando-os dia e noite, de forma a extrair o máximo de ganhos de
episódios trágicos que jamais deveriam ser expostos com tanta crueza e
tamanha leviandade. O teatro, contudo, é impedido até de evocar tais
acontecimentos para deles extrair conclusões mais gerais sobre a nossa
sociedade e o nosso tempo, estimulando a reflexão.
Trata-se
de um atentado contra a democracia brasileira. É um acinte à nossa
Constituição, cujo artigo 5º fulmina as pretensões das otoridades
atrabiliárias e obscurantistas, ao estabelecer que "é livre a expressão
da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença".
O diretor da peça Edifício London, Lucas Arantes, enfocou a morte da menina Isabella com a pretensão de dela derivar "uma mitologia universal".
O desembargador Solange,
sem evidenciar a mais remota afinidade com a manifestação artística,
sentenciou que a peça da companhia Os Satyros configuraria "violação à
imagem" de Isabella e "efetiva agressão à sua pessoa".
Consultou,
pelo menos, algum crítico teatral, que lhe explicasse didaticamente as
ferramentas dessa arte? Não. Como o mais desinformado aldeão do mais
distante grotão, o meretíssimo ficou escandalizado com o fato de a morte
de Isabella ter sido representada pelo lançamento de "uma boneca
decapitada por uma janela".
O que ele queria, que arremessassem uma atriz com marcas de agressão e ela se esborrachasse no palco?!
Fico
imaginando qual seria a reação do melindroso desembargador à
interpretação de "Dead Babies", música/performance de 40 anos atrás (veja o vídeo aqui),
tolerada pela sociedade em nome da liberdade de expressão artística,
que deve proteger inclusive os espetáculos de mau gosto. Provavelmente
condenaria Alice Cooper ao esquartejamento ou ao garrote vil...
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