Chico Oliveira, 76 anos, uma entrevista para reflexão
Esta entrevista foi publicada em 17/10/2010, mas seu conteúdo continua
muito atual e didático. Podemos e devemos aprender com esse grande sociólogo.
No começo
de 2003, ano em que rompeu com o PT, o sociólogo Francisco de Oliveira, 76,
afirmou que "Lula nunca foi de esquerda". Agora, o professor emérito
da USP dá um passo adiante e diz que Lula, mais que Fernando Henrique Cardoso,
é "privatista numa escala que o Brasil nunca conheceu". Na entrevista
abaixo, Oliveira, um dos fundadores do PT, também afirma que tanto faz votar em
Dilma Rousseff (PT) ou José Serra (PSDB), analisa o papel de Marina Silva (PV)
e critica a entrada do aborto no debate político pela ótica da religião.
Folha - Qual a sua
avaliação sobre o debate eleitoral no primeiro turno?
Francisco de Oliveira- Fora
o horror que os tucanos têm pelos pobres, Serra e Dilma não têm posições
radicalmente distintas: ambos são desenvolvimentistas, querem a
industrialização...
O campo de conflito entre eles
é realmente pequeno. Mas, por outro lado, isso significa que há problemas
cruciais que nenhum dos dois está querendo abordar.
Que tipo de problema?
Não se trata mais de provar que
a economia brasileira é viável. Isso já foi superado. O problema principal é a
distribuição de renda, para valer, não por meio de paliativos como o Bolsa
Família. Isso não foi abordado por nenhum dos dois.
A política está no Brasil num
lugar onde ela não comove ninguém. Há um consenso muito raso e aparentemente
sem discordâncias.
Dá a impressão que tanto
faz votar em uma ou no outro...
É verdade. É escolher entre o
ruim e o pior.
Qual a sua opinião sobre
a movimentação de igrejas pregando um voto anti-Dilma por causa de suas
posições sobre o aborto?
É um péssimo sinal, uma
regressão. A sociedade brasileira necessita urgentemente de reformas, e a
política está indo no sentido oposto, armando um falso consenso.
O aborto é uma questão séria de
saúde pública. Não adianta recuar para atender evangélicos e setores da Igreja
Católica. Isso não salva as mulheres das questões que o aborto coloca.
O que significa a
entrada desse tema no debate?
Representa o consenso por baixo
devido ao êxito econômico. Essas posições conservadoras ganham força. Há uma
tendência a todo mundo ser bonzinho. Nesse contexto, ninguém quer tomar
posições consideradas radicais.
Com o progresso econômico, há
um sentimento de conformismo que se alastra e se sedimenta, as pessoas ficam
medrosas, conservadoras. Isso está ocorrendo no Brasil.
Gente da classe C e D mostra-se
a favor de uma marcha de progresso lenta e contínua. Eles não querem briga, não
querem conflito. Por isso o Lula paz e amor deu certo.
Se as pessoas tornam-se
conservadoras, o que explica a divisão do Brasil quando considerada a votação
de Dilma e Serra nos Estados?
É um racha. Significa que a
questão da desigualdade regional ainda é muito marcante. Aliás, essa é outra
questão que está fora da discussão. Os dois não querem abordar o tema. O que
eles têm a dizer sobre os problemas regionais? O que fazer com as regiões
deprimidas?
Por baixo disso tudo está a
velha história de que São Paulo é uma locomotiva que puxa 25 vagões vazios.Essa tensão existe. Esse
desequilíbrio vai criando a sensação de que há um lado pobre e um lado rico.
Como se houvesse um voto comprado, de curral eleitoral, e outro consciente. Há
de fato uma fratura, e isso ressurge em períodos eleitorais.
Marina aparece como uma
terceira força sustentável?
Acho que não. A ascensão dela
se dá pela falta de radicalização dos dois principais, e a questão do ambiente
é relativamente neutra. Não vejo eco na sociedade, a não ser de forma
superficial. Não é um tema que toca nos nervos das pessoas. A onda verde é
passageira.
O sr. foi um dos
primeiros a romper com o PT, em 2003, e saiu fazendo duras críticas ao
presidente. Lula, porém, termina o mandato extremamente popular. Na sua
opinião, que lugar o governo Lula vai ocupar na história?
A meu ver, no futuro, a gente
lerá assim: Getúlio Vargas é o criador do
moderno Estado brasileiro, sob todos os aspectos. Ele arma o Estado de todas as
instituições capazes de criar um sistema econômico. E começa um processo de
industrialização vigoroso. Lula, é bom que se diga, não é comparável a Getúlio. Juscelino Kubitschek é o que
chuta a industrialização para a frente, mas ele não era um estadista no sentido
de criar instituições. A ditadura militar é fortemente
industrialista, prossegue num caminho já aberto e usa o poder do Estado com uma
desfaçatez que ninguém tinha usado. Depois vem um período de forte
indefinição e inflação fora de controle. O ciclo neoliberal é Fernando
Henrique Cardoso e Lula. Coloco ambos juntos. Só que Lula está levando o Brasil
para um capitalismo que não tem volta. Todo mundo acha que ele é estatizante,
mas é o contrário.
Como assim?
Lula é mais privatista que FHC.
As grandes tendências vão se armando e ele usa o poder do Estado para
confirmá-las, não para negá-las. Então, nessa história futura, Lula será o
grande confirmador do sistema. Ele não é nada opositor ou
estatizante. Isso é uma ilusão de ótica. Ao contrário, ele é privatista numa
escala que o Brasil nunca conheceu. Essa onda de fusões,
concentrações e aquisições que o BNDES está patrocinando tem claro sentido
privatista. Para o país, para a sociedade, para o cidadão, que bem faz que o
Brasil tenha a maior empresa de carnes do mundo, por exemplo?
Em termos de estratégia de
desenvolvimento, divisão de renda e melhoria de bem-estar da população, isso
não quer dizer nada.
Em 2004, o sr. atribuiu
a Lula a derrota de Marta na prefeitura. Qual sua avaliação de Lula como cabo
eleitoral de Dilma?
Ele acaba sendo um elemento
negativo, mesmo com sua alta popularidade. O segundo turno foi um aviso. Há uma
espécie de cansaço. Essa ostensividade, essa chalaça, isso irrita profundamente
a classe média. É a coisa de desmoralizar o adversário, de rebaixar o debate.
Lula sempre fez isso.
Como o sr. avalia as
afirmações de que o comportamento de Lula ameaça a democracia?
Não vejo como uma ameaça. Mas o
Lula tem um componente intrinsecamente autoritário.
Em que sentido?
Ele não ouve ninguém, salvo um
círculo muito restrito, e ele tem pouco apreço por instituições. Eu o conheço desde os anos de
São Bernardo. Ele tem a tendência, que casa perfeitamente com o estilo de
política brasileira, de combinar primeiro num grupo restrito e, depois, fazer a
assembleia. Ele sempre agiu assim. Não é pessoal, é da cultura
brasileira, ele foi cevado nisso. Mas não que ele queira derrubar a democracia. Isso é da cultura política em
que ele foi criado: o sindicalismo, que é um mundo muito autoritário, muito
parecido com a cultura política mais ampla. E ele se dá bem, sabe se mover
nesse mundo. As instituições de fato não são
o barato dele. Mas ele não ameaça a democracia do ponto de vista mais direto
nem tem disposição de ser ditador. Acho essas afirmações um exagero, uma
maldade, até. Elas têm um conteúdo político muito evidente. Agora, certa ala do PT, com
José Dirceu... Esse tem projetos mais autoritários.
E essa ala ganharia mais
força num governo Dilma?
Acho que não. Porque Lula vigia
ele de muito perto. Lula não gosta dele [José Dirceu]. Tem medo, até, do ponto
de vista político. Ele veio de outra extração, a qual Lula detesta. Uma
extração propriamente política, de esquerda.
O sr. já disse que Lula
havia matado a sociedade civil. O que pode acontecer num governo Dilma e Serra?
Haveria diferença?
Os governos tucanos têm horror
ao povo. Isso não é força de expressão. É uma questão de classe social. Eles não têm contato com o real
cotidiano popular. Eles não andam de ônibus, não têm experiência do cotidiano
da cidade. Nem de metrô eles andam, o que é incrível. A cidade é grande, tem
violência, a gente sabe. Mas eles não sabem como é o transporte, como são os
hospitais, as escolas públicas. Há uma fratura real, eles perderam a
experiência do cotidiano real. E isso não entra pelas estatísticas, só pela
experiência. Por causa disso, o governo
deles é sempre uma coisa muito por cima. Eles são pouco à vontade com o
popular. Essa é a diferença marcante em relação a Lula. Sobre Dilma eu não sei. Ela
pode também sofrer desse mal.
Mas, do ponto de vista
da evolução e da função dos movimentos sociais, qual dos dois é preferível?
Eis uma questão difícil. Os
tucanos, com esse horror a pobre, tendem sempre a aumentar essa fratura, essa
separação. Os tucanos não têm jeito...
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/815456-sociologo-e-fundador-do-pt-afirma-que-lula-e-mais-privatista-que-fhc.shtml
©DesProf.Peixoto.
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