Nasceu! Guil Simon Peixoto Cruz. DIÁRIO DO EXÍLIO 12: Carta de um Pai ao novo filho.




“De tudo o que está escrito, eu amo somente aquilo que o homem escreveu com o seu próprio sangue. Escreve com sangue e experimentarás que sangue é espírito.” Nietzsche, F. Assim Falou Zarathustra.

“ Minhas palavras são extensões do meu corpo...” Rubem Alves

Guil, meu filho:

Finalmente você foi nascido! Nesta manhã do dia 04 de março de 2011 pela manhã, infelizmente em rolim de moura, em rondônia e numa família cujo pai é professor de escola pública. Se dependesse só de mim seria em outro lugar melhor que esses e numa família de melhor poder aquisitivo. Mas, quis as condições que também fui gerado e em que vivo; quis as circunstâncias dessa profissão abraçada equivocadamente; quis minhas burrices cometidas ao longo da minha vida e a vontade dos OUTROS as quais tenho que forçadamente lidar: a sociedade e seus governantes e a esse lugarzinho, em especial, você foi nascido nessa infeliz cidade, nesse infeliz estado, do jeito como eles se configuram em meu tempo infelizmente. Peço-lhes perdão por isso.

Com certeza, antes de você aprender a ler e me ler, outros terão lido o que aqui escrevo. Certamente não gostarão das minhas palavras, se sentirão mal com elas. Mas, como não escrevo para quem assim se sente não me importo. Que se danem! Não fingirei está feliz quando não estou. Nem quero saber se dirão que cuspo no prato em que como. De novo eu digo: que se danem quem assim pensa! Ninguém, absolutamente ninguém, seja aqui ou acolá, nunca me deu nada de graça: Fui e ainda sou obrigado a trabalhar para poder pagar o alimento que como, as roupas que visto e o aluguel do espaço em que me escondo. Não devo nada a rondônia. Ela é que me deve muito. Lamento meu filho por tê-lo feito nascer aqui, neste lugarzinho, neste momento ruim que este lugar oferece a quem nele tem que trabalhar. Não estranhe se eu compará-lo a ilha do seriado americano “LOST” que andei assistindo antes mesmo do projeto - você ser concebido. Uma vez dentro, a ilha não deixa você sair dela. Por isso, espero que um dia você possa me perdoar por teres sido nascido aqui. Quem sabe você possa ter melhor sorte?

Guil me perdoe também por ter me aborrecido com sua mãe pouco tempo antes de você aparecer. É que ela tem uma mania estranha a mim , que me aborrece muito. Desde que viemos para esta ilha, perdão, neste lugar ela tem se confraternizado muito com os OUTROS: aqueles que não estão com a gente, no nosso nessa ilha. Esses a quem chamo de os OUTROS são seus avós maternos, tias e tios, enfim: os integrantes da grande família da qual ela ainda acredita fazer parte. Mas, que se recusa a acreditar nisso e dela se desligar de vez. Os OUTROS que interferem demais nas nossas vidas; que se valem da nossa precária situação para se impor a nós e nos assilimar com a intenção de nos tornarmos UM: coisa que sempre resisti. Foi um gesto dela favorável aos OUTROS que me aborreceu e me fez falar com ela de maneira ríspida. Coisa que me fez mal, muito mal. Porque temi lhe afetar negativamente mais que já estou lhe afetando pelo fato de ser quem eu sou, de fazer o que tenho de fazer para sobreviver neste lugar que, de alguma maneira, me aprisiona. Mas, tudo bem. Que fazer? Para evitar maiores problemas me comprometi a evitar novas discussões; a engolir seco. Desculpe-me por isso também meu filho.

Guil, seu pai é um professor readaptado. Mas o que é isso: professor? E readaptado? Ainda bem que você ainda não entende que conceito é esse. Mas, mesmo assim deixo aqui explicado para algum dia quando você me ler possa fazer isso de uma maneira generosa. No tempo e na ilha em que vivo professor é um trabalhador assalariado. Isto é, alguém que vende sua capacidade de reproduzir, de forma bem explicada, aquilo que o Estado quer que seja reproduzido e assimilado por todos desde a infância até a maturidade dentro de salas de aulas públicas ou privadas. Seu pai só pode fazer isso porque seu avô mascate se lascou a vida inteira para ele pudesse estudar sem ter que trabalhar também e tivesse condições de ter um emprego, ou melhor: de ser um assalariado. Infelizmente isso não foi o suficiente para fazer do seu pai alguém melhor, economicamente, que seu avô. Seu pai não teve como galgar outra posição na sociedade. Ter sido filho de um mascate ou camelô como alguns preferem chamar e de uma dona de casa definiu, em certa medida o que me tornei: um trabalhador assalariado. Um dia você poderá conhecer um cara chamado Karl Marx. Ele lhe explicará bem o que acabo de dizer a respeito disso. Ele te dirá que: "Nem sempre podemos abraçar a profissão para a qual acreditamos estar preparados; nossa posição na sociedade está em certa medida definida antes que tenhamos condições de determiná-la". Então, Guil, seu pai, por enquanto, não pode ser melhor do que é, e não terá como te oferecer uma condição melhor que a dele. Espero que você possa compreender e me ajudar de alguma forma.

Quanto ao conceito de readaptado te digo que é assim que chamam todos professores cujo prazo de validade expirou e que, por isso, não “dão” mais aulas. São postos em outras funções que conseguem suportar realizar. A profissão de professor causa, com o passar do tempo, um desgaste físico e mental que junto com os baixos salários que recebem; o assédio moral que sofrem no ambiente das escolas que trabalham; o número excessivo de alunos que tem que lidar todos os dias; o desprezo dos governantes; a omissão da sociedade e o cinismo do seu sindicato lascam por dentro e por fora todos os que vivem apenas dessa profissão. Por isso seu pai está como estar. É claro que você verá que há “professores” que não são assim, mas creia-me: é uma absoluta minoria. Muitos desses nem sequer precisam trabalhar de professor. Esse trabalho para eles é um bico, um passa tempo e um complemento da renda que seu cônjuge recebe. Eu não faço parte desse pequeno grupo de privilegiados.

Guil, você foi nascido numa família cuja mãe é devota, beata católica carismática; descendente de camponeses, tão beato ou mais que ela. De mentalidade profundamente religiosamente rural. Sua mãe detesta a cidade grande, a urbanidade que não seja da cidade pequena, a da província. Sua escolaridade, por enquanto é de nível médio e só ler livros religiosos, cristãos. Já este seu pai é recifense, pernambucano. Foi criado numa cidade metropolitana de mais de um milhão de habitantes próximo a costa brasileira. Estudou uma parte da vida na escola privada e o restante na Escola Pública e se formou numa universidade pública também numa área que espero que você possa conhecer e gostar: a História. Numa grande parte da sua vida foi protestante e noutra parte tenta se livrar da herança ruim dessa tradição religiosa. Hoje não tolera mais o cristianismo que já viveu, conheceu e que ver de fora nesse momento de sua vida. Embora não consiga se livrar das marcas que dele herdou.E ler o quanto pode variados livros. Porque ama a leitura. Tomara que você também gostar de ler.

Por fim meu filho: por essas e outras coisas seu nome é Guil Simon Peixoto da Cruz. Guil por representar a parte não cristã que tento desenvolver e conservar nessa família. Simon por representar a parte cristã que insiste e resiste em continuar influenciando. Peixoto por lembrar seu avô mascate e Pernambuco. E Cruz por simbolizar os OUTROS da ilha que você foi nascido. Tomara que você consiga não sofrer tantas influencias doutrinárias de nenhum dos dois lados. Que você seja você mesmo, que, na medida do possível, seja alguém melhor e mais forte do que eu, seu pai. Que se relacione bem com seus irmãos; tenha amigos verdadeiros, aprenda a ganhar a vida de maneira mais inteligente e, principalmente, seja feliz. Seja bem vindo meu filho e Alea jacta Est!

Seu pai, Moisés Peixoto.04 de março de 2011.

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