Contra o esquecimento!

RESENHA
1-Os eventos tendem a perder força na medida em que o tempo passa. Os vínculos das novas gerações com o passado histórico de uma nação fragilizam-se e inclina-se à formalização, através do registro escrito, cinematográfico, etc. A compreensão do real significado dos acontecimentos que marcaram épocas e envolveram seres humanos reais, de carne e osso, tem uma dimensão que vai além do fator racional. É diferente conhecer a história pelos livros, relatos, etc. do reconhecer-se enquanto sujeito atuante no cerne dos fatos transformadores de uma dada época. É muito diferente o “estudar a História” do “fazer a História”.

2- Quanto mais presente a dimensão de pertencimento a um determinado tempo histórico, maior o comprometimento com o resgate e permanência da memória. Não obstante, o tempo não pára e com o passar do tempo a memória dos vivos é suplantada. O acesso das novas gerações à memória histórica é, então, possibilitado pela atividade intelectual dos escritores e pesquisadores interessados ou de alguma forma envolvidos com a reflexão sobre os eventos que constituem a História. A escrita é uma das formas privilegiadas de propiciar às gerações vindouras os vínculos necessários com o passado, ainda que tendam à formalização e frieza inerentes à racionalização dos fatos históricos. Mesmo assim, cumpre uma função importante na luta contra o esquecimento.

3-“Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado”, afirmou George Orwell em 1984. A memória é, portanto, uma das questões política fundamentais. Não é por acaso que todos os governos, ditaduras ou democracias, intentam controlar as mentes através de procedimentos restritivos, seletivos e manipulatórios.

4- Por outro lado, a democracia favorece a pluralidade e mesmo a competição entre as versões dos fatos propagadas pelos setores interessados. Os fatos não são apenas “fatos puros” e “objetivos”, mas também interpretações motivadas por interesses políticos e ideológicos. Há também o interesse de passar a borracha sobre o passado, de controlá-lo. Não é casual que os herdeiros dos ditadores, e aqueles cujo passado os condenam, se esforcem ao máximo pelo esquecimento. Eles almejam enterrar as lembranças e os fantasmas que, talvez, assombram os seus sonhos – embora teimem em construir argumentos racionais para justificar o injustificável. Se depender deles, o passado jaz nos túmulos sombrios das suas vítimas.

5- Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil, organizado por Cecília Macdowell Santos, Edson Teles e Janaína de Almeida Teles, rompe com o consenso que caracterizou a transição política brasileira, da ditadura militar-civil à democratização, e negou o caráter público à memória referente à repressão perpetrada pelos órgãos e indivíduos vinculados ao Estado brasileiro e que vitimaram muitos dos que escolherem a luta contra o autoritarismo. Há um esforço político em restringir esta memória aos indivíduos diretamente envolvidos e seus familiares. A herança autoritária, por sua vez, sobrevive e se metamorfoseia nas instituições democráticas.

6- Diante disto, algumas questões colocadas pelos organizadores do livro expressam bem o fio de Ariadne que norteiam as reflexões dos artigos publicados:

Qual o papel hoje desempenhado pela memória dos anos da ditadura e pela justiça? É possível esquecermos as violações de direitos humanos? Ou o inesquecível da tortura continuará a habitar as cenas públicas e privadas da vida social? Qual a contribuição da justiça para a compreensão e a reparação das atrocidades cometidas no passado? Qual a possibilidade de imaginarmos uma democracia com a livre construção da memória pública?” (p.13-14).

7- Num diálogo entre o passado e o presente, os autores desta obra interpretam os eventos históricos, práticas e ideologias dos grupos de esquerda, militares e instituições do Estado no período da ditadura militar-civil. Na primeira parte, “Construindo memórias e histórias de resistências”, Murilo Leal Pereira Neto reconstrói as biografias políticas de Sidney Fix Marques dos Santos, Olavo Hansen e Paulo Roberto Pinto (Jeremias), militantes trotskistas do Partido Operário Revolucionário (POR).

8- Ele mostra que a repressão política é inerente à organização do Estado, independente da forma de governo (ditadura ou democracia). “Devemos lembrar que os três jovens padeceram da repressão em pleno período democrático, de 1961 a 1964, por distribuírem panfletos, fazerem pichações ou liderarem greves”, salienta (p. 44). Não esquecer é fundamental para pensarmos a democracia, seus limites e a necessidade de aprofundamento. Como frisa Neto, “recordar e narrar significa ampliar os horizontes no presente com as causas ganhas e perdidas do passado” (p.26).

9- No segundo capítulo, “Memória e cidadania: as mortes de V. Herzog, Manuel F. Filho e José F. de Almeida”, Mário Sérgio de Moraes analisa a conjuntura política e social, os fatores que levaram ao assassinato destes militantes e a repercussão nos meios de comunicação e na sociedade. “A palavra cidadania, tantas vezes referida como sinônimo de respeito público, não foi encontrada para definir a situação do operário”, ressalta o autor (p.61). Com efeito, o conceito de cidadania é interpretado segundo critérios de classe social. Assim, explica-se as reações diante da morte de ambos.

10- Everaldo de Oliveira Andrade, no capítulo 3, “A liberdade nasce da luta: o surgimento da OSI na crise da ditadura”, analisa o contexto da formação da Organização Socialista Internacionalista (OSI), também conhecida como “Libelu” (Liberdade e Luta), em outubro de 1976. Trata-se de uma contribuição importante para a história do marxismo no Brasil, em especial a vertente trotskista.

11- No capítulo 4, “Servir ao povo de todo o coração”: mulheres militantes e mulheres operárias no ABC BA década de 1970”, Antonio Luigi Negro examina a experiência das militantes da Ala Vermelha que, no processo de proletarização, envidaram esforços para se integrarem ao cotidiano das trabalhadoras metalúrgicas.

12- No quinto, Flamarion Maués analisa o processo de produção e distribuição, impacto, repercussão e papel político do livro “Tortura: A História da Repressão Política”, escrito pelo jornalista Antonio Carlos Fon e publicado em julho de 1979 pela Editora Global (São Paulo). No seguinte, Tatiana Moreira Campos Paiva aborda um tema complexo: a experiência dos filhos de exilados políticos brasileiros. E, no último capítulo da primeira parte, Janaína de Almeida Teles apresenta a reflexão sobre a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, entre o luto e a melancolia. É importante destacar o significado traumático e doloroso imposto pela prática repressiva que gerou o desaparecimento e criou “um situação sem fim, perpetuando a tortura que é viver a ausência dos corpos e de informações dos parentes e pessoas queridas” (p.154).

13- Na Parte II, os autores analisam a “Repressão, Ideologia Militar e Instituições do Estado”. No capítulo 8, “Tortura e ideologia: os militares brasileiros e a doutrina da guerre révolutionnaire”, João Roberto Martins Filho examina a influência da doutrina militar francesa sobre o Exército brasileiro. No seguinte, Anthony W. Pereira analisa as nuances e papéis desempenhados pelos sistemas judiciais e a repressão política no Brasil, Chile e Argentina. O autor levanta questões importantes para a compreensão das relações complexas entre sistema judiciário, Estado e repressão política.

14- No capítulo 10, Kathia Martin-Chenut analisa “O sistema penal de exceção em face do direito internacional dos direitos humanos”. No seguinte, Samantha Viz Quadrat, avalia a Operação Condor e o impacto das denúncias nos meios judiciais. Ela discute, ainda, como estes fatos repercutiram no Brasil. Já no capítulo 12, Silvio Luiz Gonçalves Pereira examina “As comissões Parlamentares de inquérito na Câmara dos Deputados durante a crise político- institucional brasileira (1963-1968)”. No capítulo 13, Maurício Maia faz uma reflexão sobre “as práticas cotidianas daqueles que se utilizam do segredo como ferramenta de trabalho no trato da coisa pública” (p.287). Seu ponto de partida é “a paradoxal experiência brasileira, em que graves episódios de violação dos direitos humanos são acobertados pelo manto do silêncio, mesmo em períodos de normalidade democrática” (id.). No último capítulo, “O passado recente em disputa: memória, historiografia e as censuras da ditadura militar”, Douglas Attila Marcelino “aborda as disputas de memória que envolvem o estudo da censura exercida durante a ditadura, procurando redimensionar a atuação do Serviço de Censura de Diversões Públicas e fazer uma análise crítica do conhecimento histórico produzido sobre a temática” (p.21).

15- São estes os temas expostos e analisados pelos autores no primeiro volume de Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. Como salientam os organizadores, o objetivo é “apresentar um espectro de reflexões críticas e multidisciplinares sobre os diversos aspectos sociais, culturais, políticos e jurídicos da constituição da memória da ditadura, da justiça e da democracia no Brasil” (id.).

16- Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil se insere nos esforços para resgatar a memória da geração que lutou contra a ditadura militar e civil implantada no Brasil nos idos de 1964. O esquecimento é a segunda morte. Relembrar os fatos históricos, nossos mortos e suas lutas são formas de mantê-los “vivos”. Não esquecer é também uma maneira de se exigir justiça e relembrar às novas gerações que o passado não jaz em sepultura impenetrável e protegida. O passado não está sepultado definitivamente e, se descuidarmos, pode ressurgir. Nem mesmo a democracia é garantia suficiente contra o retorno dos ditadores. O regime democrático pode transmudar-se no seu oposto.

17- Esta obra cumpre um papel importante ao oferecer aos leitores vinculados à geração da luta contra a ditadura militar-civil (1964-1985) a possibilidade de refletir sobre a herança que se mantém atual, reforçando a luta pelo não esquecimento e pela justiça. Por outro lado, possibilita à geração pós-redemocratização, o contato com o passado que forjou o tempo presente e, certamente, influiu sobre as suas vidas – ainda que nem tenham consciência do significado e importância do período antecedente.

18- Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil é, portanto, um livro essencial para compreender o passado e o presente político-social. Pois, como afirmam os organizadores: “A transformação do presente depende do conhecimento do passado e do reconhecimento de como esta herança se manifesta e é avaliada nos dias atuais” (p.13).

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* RESENHA: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida. (Orgs.) Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil, volume I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2009 (340 p.) Publicada originalmente na REVISTA ESPAÇO ACADÊMICO, nº 117, fevereiro de 2011 (clique no link para ler a versão em PDF).

Fonte: http://antoniozai.wordpress.com/

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