COMANDANTE CARLOS LAMARCA (1937-1971): VENCER OU MORRER
Hoje  se completam 40 anos da morte do comandante Carlos Lamarca, que estava   debilitado e indefeso quando foi covardemente executado pela repressão   ditatorial no sertão baiano, em 17 de setembro de 1971, numa típica  vendetta  de gangstêres.
O   que há, ainda, para se dizer sobre Lamarca, o personagem brasileiro   mais próximo de Che Guevara, por história de vida e pela forma como   encontrou a morte?
Foi,   acima de tudo, um homem que não se conformou com as injustiças do seu   tempo e considerou ter o dever pessoal de lutar contra elas, arriscando   tudo e pagando um preço altíssimo pela opção que fez. 
Teve   enormes acertos e também cometeu graves erros, praticamente  inevitáveis  numa luta travada com tamanha desigualdade de forças e em   circunstâncias tão dramáticas.
Mas,   nunca impôs a ninguém  sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a   ser comovente seu zelo com os companheiros -- via-se como responsável   pelo destino de cada um dos quadros da Organização e, quando ocorria  uma  baixa, deixava transparecer pesar comparável ao de quem acaba de  perder  um ente querido.
Dos seus melhores momentos, dois me sensibilizaram particularmente.
Logo depois do Congresso de Mongaguá (abril/1969), quando a VPR saía de uma temporada de luta interna e de  quedas    em cascata, o caixa estava a zero e a rede de militantes, clandestinos   em sua maioria, carecia desesperadamente de dinheiro para manter as   respectivas  fachadas -- qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel, poderia atrair atenções indesejáveis.
Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas.
Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas.
Então,   quando se planejou a expropriação simultânea de dois bancos vizinhos,   na zona Leste paulistana, o pessoal experiente que sobrara não bastava   para levá-la a cabo.
Eu   e os sete companheiros secundaristas que acabáramos de ingressar na   Organização fomos todos escalados -- na enésima hora, entretanto, chegou   a decisão do Comando,  que me designou para criar e coordenar um setor   de Inteligência, então fiquei de fora.
Lamarca, procuradíssimo pelos órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no seu  batismo de fogo.   Os outros quatro comandantes tudo fizeram para demovê-lo, em nome da   sua importância para a revolução. Em vão. A lealdade para com a  tropa  nele falava mais alto.
Depois   de muita discussão, chegou-se a uma solução de compromisso: ele não   entraria nas agências, mas ficaria observando à distância, pronto para   intervir caso houvesse necessidade.
Houve:   um guarda de trânsito, alertado por transeunte, postou-se na porta de   um dos bancos, arma na mão, pronto para atingir o primeiro que saísse.
Lamarca,   que tomava café num bar a 40 metros de distância, só teve tempo de   apanhar seu .38 cano longo de competição, mirar e desferir um tiro   dificílimo -- tão prodigioso que, no mesmo dia, a ditadura já percebeu   quem fora o autor. Só um atirador de elite seria capaz de acertar.
Segundo   o Darcy Rodrigues, foi a vida dele que Lamarca salvou. O próprio,   contudo, contou-nos que seria um dos novatos o primeiro alvejado.
Como resultado, a repressão teve pretexto para fazer de Lamarca o  inimigo público nº 1   -- e, claro, o fez. A imagem dele foi difundida à exaustão,  obrigando-o  a redobrar cuidados e até a submeter-se a uma cirurgia  plástica.
Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.
Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.
Dá para qualquer um imaginar a indignação resultante -- afinal, as (dantescas) circunstâncias reais da morte do  Bacuri  ficaram conhecidas na Organização. 
Mesmo   assim Lamarca não arredou pé, usando até o limite sua autoridade para   evitar que a VPR desse aos inimigos o monumental trunfo que as Brigadas   Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem Aldo Moro. O episódio foi  tão  traumático que ele acabou deixando a VPR.
E, no MR-8, novamente divergiu da maioria dos companheiros -- quanto à sua salvação. 
Pressionaram-no   muito para que saísse do Brasil, preservando-se para etapas  posteriores  da luta, pois em 1971 nada mais havia a se fazer. Aquilo  virara um  matadouro.
Conhecendo-o   como conheci, tenho a certeza absoluta de que não perseverou por   acreditar numa reviravolta milagrosa. Em termos militares, suas análises   eram as mais realistas e acuradas. Nunca iludia a si próprio.
O motivo certamente foi a incapacidade de conciliar a idéia de  fuga    com todos os horrores já ocorridos, a morte e os terríveis sofrimentos   infligidos a tantos seres humanos idealistas e valorosos. Fez questão  de  compartilhar até o fim o destino dos companheiros, honrando a  promessa,  tantas vezes repetida, de vencer ou morrer.
Doeu -- e como! -- vermos os militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais selvagem e repulsiva. 
Mas,   ele havia conquistado plenamente o direito de desconsiderar fatores   políticos e decidir apenas como homem se preferia viver ou morrer. 


