ENTRE VERDADES, FALÁCIAS E NECESSIDADES
O caso Marco Feliciano e a pauta dos direitos humanos
Pela análise das ações da Comissão de Direitos Humanos da Câmara é possível identificar que, sob a presidência de Marco Feliciano, não houve avanços em relação a proposições de leis, à defesa dos direitos humanos ou mesmo à fiscalização do Executivo
por Magali do Nascimento Cunha [Publicado em Le Monde Diplomatique, abr 2014]



Na primeira reunião deliberativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), após a polêmica gestão do deputado e pastor evangélico Marco Feliciano (PSC-SP), em 12 de março de 2014, sob a presidência de Assis do Couto (PT-PR), foi adotado um discurso e uma prática de que seria preciso “virar a página”. A “página” em questão foi o caso “Marco Feliciano” – um episódio sem precedentes no Congresso Nacional.
No início de 2013, o Partido Socialista Cristão (PSC) indicou Feliciano, membro de sua bancada, para a presidência da CDHM. Foram imediatas as reações de grupos que lutam pelos direitos humanos alegando que não só o deputado indicado e seu partido não apresentavam qualquer histórico de envolvimento com a causa dos direitos humanos que os qualificassem para o posto, como também o parlamentar era conhecido em espaços midiáticos por declarações discriminatórias em relação a negros e homossexuais. A defesa do PSC foi o protocolo parlamentar que lhe deu o direito de fazer a indicação. Isso, por si, já é fonte de reflexões, em especial quanto ao porquê de a defesa dos direitos humanos ser colocada pelos grandes partidos como moeda de troca, e barata. Porém, havia ainda o ingrediente da religião: além da eleição do presidente, pastor evangélico ligado à Assembleia de Deus, movimentos da Câmara levaram a que, dos 22 parlamentares que efetivamente passaram a atuar na comissão, dezessete fossem filiados à Frente Parlamentar Evangélica (FPE), identificados com bandeiras de “defesa da família”.
Os motes como “Fora, Feliciano” e “Feliciano não me representa”, amplamente divulgados em mídias sociais, a criação de uma frente parlamentar de oposição à eleição de Feliciano e o estímulo, pelas mídias noticiosas, de uma guerra religiosa entre evangélicos e ativistas do movimento de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT), e entre evangélicos e não cristãos foram elementos que potencializaram as tensões em torno do caso. Nessa disputa, o “Fica, Feliciano” acabou prevalecendo, o que não impediu que a gestão do deputado na CDHM fosse permanentemente marcada por conflitos. Durante sua presidência, Feliciano fez várias declarações sobre o bom êxito de seu trabalho, sobre ter “esvaziado a pauta ruim da CDHM” e até ter ocupado um espaço que previamente “era dominado por Satanás”.
Em 13 de março de 2014, diante da ênfase da cobertura das mídias noticiosas na “virada de página” da CDHM, Feliciano pronunciou-se pelo Twitter: “Boa parte da mídia é de militantes que ainda não engoliram o êxito da CDHM em 2013. Não aceitam não terem derrubado a presidência da CDHM. Ainda estão entalados! (rsrsrs) [...] Já disse e repito: estamos tranquilos, esvaziamos a pauta ruim da CDHM e temos na comissão quinze cadeiras; se aparecer algo ruim, obstruiremos!”.
No atual contexto de uma nova gestão e de um período de campanha eleitoral, o qual não deixará de fora o ano atípico da CDHM, emerge o desafio de uma reflexão para além da retórica passional do ex-presidente da comissão e de seus aliados. Afinal, havia uma pauta anterior da comissão que carecia de limpeza a ponto de ser classificada como “satânica”? Nesse sentido, qual foi o desempenho de Marco Feliciano diante da CDHM? Foram essas questões que motivaram a realização deste estudo exploratório que buscou traçar um perfil do trabalho da comissão nos três anos do atual mandato parlamentar. Para isso foram lidas, comparadas e analisadas todas as atas das reuniões da CDHM em 2011, 2012 e 2013, disponíveis no site .

O desempenho da CDHM de 2011 a 2013
A CDHM não tem como característica primeira o julgamento de mérito de proposições em tramitação na Câmara. Funciona mais como uma espécie de “CPI permanente” dos direitos humanos, recebendo e encaminhando denúncias e acusações. Além disso, tem desempenhado importante papel como canal de interlocução da sociedade civil com os poderes Legislativo e Executivo. Na atual legislatura, além de Feliciano, a comissão foi presidida em 2011 pela deputada Manuela d’Ávila (PCdoB-RS) e, em 2012, pelo deputado Domingos Dutra (SDD-MA, na época PT).
Nos três anos analisados, o número de deputados atuantes foi praticamente igual. A quantidade de reuniões também foi similar, apesar de inferior em 2013. Vale observar que essa diferença se materializa por conta da realização de menos seminários e audiências públicas, ao mesmo tempo que ocorreu uma quantidade bem maior de reuniões deliberativas, as quais não tiveram impacto nos outros indicadores.

Atuação por número de requerimentos
Até outubro de 2013, a CDHM só tinha votado 86 requerimentos, ao passo que em 2011 tinham sido 162 e, em 2012, 184. Nos meses de novembro e dezembro de 2013, porém, houve um grande aumento dos requerimentos aprovados (157), mas estes tiveram poucas consequências. Chama atenção a baixa eficiência ocorrida sob a gestão de Feliciano: em todos os itens quantificáveis, o desempenho na CDHM sob sua presidência foi inferior.
Os requerimentos cobriram menos estados do país e o número de eventos realizados (seminários, atos e audiências públicas) em 2013, 24, foi a metade dos feitos em 2011, apesar de, em 2013, o número de reuniões solicitadas ter sido um pouco superior. Em 2011, foram realizadas 42,6% das audiências e seminários solicitados, já em 2012 esse percentual foi de 24,8% e, em 2013, de 18,3%. O presidente também foi bem menos ativo em 2013. Se somarmos os requerimentos de autoria dos presidentes nos três anos, constata-se que Feliciano foi autor de apenas 15% destes.

Os temas predominantes
Uma das explicações de Feliciano para a aguda reação negativa à sua indicação seria a força da agenda dos movimentos LGBT no dia a dia da comissão. Uma análise dos temas abordados não confirma essa interpretação. A comissão tratou, em média, de cerca de trinta temas a cada ano. Se tomarmos o período analisado em conjunto, os três temas com maior quantidade de requerimentos foram: violência (9,3%); crianças e adolescentes (8,1%); e questões relativas à Comissão Nacional da Verdade (7,9%). Esses temas ocuparam a primeira posição em cada uma das gestões, e dois deles, a segunda posição em outros anos: violência, em 2012, e crianças e adolescentes, em 2011. Requerimentos relacionados à temática LGBT aparecem em número reduzido: cerca de 2% do total (3,1% em 2011, 2,6% em 2012 e 1,4% em 2013).
Nessa linha também foi dito pelo ex-presidente da CDHM que por meio da comissão teriam sido canalizadas centenas de milhões de reais para o movimento LGBT em anos anteriores. A observação das emendas aprovadas pela comissão nos três anos estudados indicam duas coisas: 1) cada comissão tem uma ênfase, a qual foi expressa na destinação dessas verbas: em 2011, para a proteção de pessoas ameaçadas; em 2012, para a preservação de acervos do Ministério da Justiça; e, em 2013, para o apoio à reforma em instituições e a promoção de direitos de crianças e adolescentes; 2) fora essas especificidades, os outros programas escolhidos para receber recursos foram praticamente os mesmos (violência contra a mulher, direitos indígenas e quilombolas). Afirmações recorrentes de que a CDHM teria aprovado milhões de reais para o “ativismo gay” carecem de melhor e maior comprovação e, no caso, não possuem qualquer relação com as emendas aprovadas.
O que se tem de concreto nessa temática é que a gestão de 2013 buscou marcar espaço em relação a projetos de leis, assumindo posições contrárias a reivindicações do movimento LGBT: exclusão do projeto sobre o direito de casais homossexuais à Previdência Social; disputas com o Conselho Federal de Psicologia no tema que ficou conhecido como “cura gay”; contestação da decisão do Conselho Nacional de Justiça favorável à realização de casamentos entre homossexuais em cartórios. Essas decisões serviram mais para dar visibilidade e espaço na mídia e não tiveram consequências concretas, pois representam apenas uma etapa do processo legislativo, estando todas paralisadas em outros colegiados da Câmara.
Os conteúdos dos requerimentos e das proposições aprovadas e rejeitadas na CDHM em 2013 demarcam bem o tom e a direção adotada. Foi apresentado, por exemplo, requerimento para que fosse discutida uma legislação alemã que permite a omissão do sexo do bebê na certidão de nascimento; ocorreu uma audiência pública para a criação do Dia Nacional do Capelão Evangélico e propostas foram encaminhadas para a criação do Dia do Perdão e do Dia do Jejum − alguns exemplos de que o trabalho da comissão em 2013 pouco contribuiu para avanços na sensível temática dos direitos humanos.

Direitos humanos, política e religião
O fato de o presidente da CDHM ser pastor não tem necessariamente relação com o frágil desempenho descrito. A história tem registrado contribuições fundamentais das religiões aos direitos humanos, com ações que seguem um caminho contra-hegemônico e se opõem a valores e lógicas predominantes, questão recentemente abordada no livro Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos, de Boaventura de Sousa Santos (São Paulo, Cortez, 2013).
Ocorre que no Brasil, depois de altos e baixos em termos numéricos, decorrentes de casos de corrupção e fisiologismo, a bancada evangélica se consolidou como força, o que resultou na criação da FPE em 2003, que conta atualmente com 73 congressistas, de dezessete igrejas diferentes, treze delas pentecostais, mostrando o poder dessa fatia maior de evangélicos. Os parlamentares evangélicos não eram identificados como conservadores do ponto de vista sociopolítico e econômico, como o é a Maioria Moral nos Estados Unidos, por exemplo. Seus projetos raramente interferiam na ordem social: revertiam-se em “praças da Bíblia”, na criação de feriados para concorrer com os católicos, em benefícios para templos. O perfil dos partidos aos quais a maioria dos políticos evangélicos está afiliada reflete isso bem, com recorrentes casos de fisiologismo.
Mais recentemente é o forte tradicionalismo moral que tem marcado a atuação da FPE, que trouxe para si o mandato da defesa da família e da moral cristã contra a plataforma dos movimentos feministas e de homossexuais e, para levar adiante proposições que demarquem essa bandeira, vale-se de alianças até mesmo com segmentos católicos, espíritas e de religiões afro-brasileiras, diálogo historicamente impensável no campo eclesiástico. Ao se referir ao caso Marco Feliciano, o diretor do instituto de pesquisa Datafolha, Mauro Paulino, indicou que o discurso do deputado atinge preocupações de parte da população: “Entre os brasileiros, 14% se posicionam na extrema direita. As aparições na imprensa dão esse efeito de conferir notoriedade a ele”.
Constatar esses aspectos é refletir que Marco Feliciano, Jair Bolsonaro e tantos outros eleitos ganham espaço e legitimidade porque representam o conservadorismo de determinada parcela da população. Essa tendência reflete um espírito presente de reação a avanços sociopolíticos que dizem respeito não só a direitos civis homossexuais e das mulheres, como também a direitos de crianças e adolescentes, a ações afirmativas (cotas, por exemplo), à ação da Comissão Nacional da Verdade, a políticas de inclusão social e cidadania. Nessa articulação, a religião, por meio de suas lideranças, se revela, por vezes instrumentalizada, uma porta-voz. Exemplo destacado é a ampla campanha pela redução da maioridade penal veiculada pelas mídias noticiosas e liderada pelo senador evangélico Magno Malta (PR-ES). Portanto, há um peso nas articulações ideológicas em curso na sociedade brasileira e, de forma mais ampla, latino-americana, já que situações semelhantes, em especial as tensões entre evangélicos e o movimento LGBT, ocorreram recentemente envolvendo políticos na Costa Rica e no Equador.

Direitos humanos e novas perspectivas
Pela análise das ações da CDHM, é possível identificar que, sob a presidência de Feliciano e a participação de outros parlamentares da FPE, não houve avanços em relação a proposições de leis, à defesa dos direitos humanos ou mesmo à fiscalização do Executivo, tendo sido abordada uma grande maioria de temas questionáveis e irrelevantes. No ano do desaparecimento de Amarildo, nada foi feito pela comissão, resumindo-se a poucas e limitadas ações ocorridas dentro do esperado. O real “avanço” parece ter sido em relação à exposição na mídia e nas possibilidades desejadas de reeleição de seus membros.
Pessoas informadas compreendem a complexidade do Legislativo e do jogo político brasileiro, não cabendo posturas alarmistas em relação a temáticas que legitimamente se encontram em discussão no Parlamento. Além disso, temáticas históricas têm custado cotidianamente a vida de pessoas. Esses temas, que parecem não interessar a Feliciano, por ele rotulados de “esquerdistas”, são urgentes e reais. Resta lamentar que tal avaliação seja assumida por uma pessoa que exerceu a presidência da CDHM.
O final de 2013 indicou novas perspectivas, com a realização em dezembro do Fórum Mundial de Direitos Humanos, em Brasília. Mais de 10 mil pessoas de dezenas de países se dedicaram a discussões, reflexões e articulações em prol dos direitos humanos. Entre as centenas de atividades realizadas foi possível identificar a presença de várias que tinham o tema da religião como eixo motivador, tanto discussões sobre tolerância religiosa como de defesa do Estado laico. Questões mais amplas também estiveram presentes, e evangélicos se dedicaram a discutir elementos concretos, como soberania alimentar, uso da terra e combate ao uso de agrotóxicos, ou ainda a defesa da desmilitarização da polícia e a necessidade de mais ações de enfrentamento ao extermínio da juventude negra.
A polarização destacada em 2013 em nada acrescenta à construção da democracia brasileira, sendo imprescindível que algumas das lideranças evangélicas, como também das do movimento LGBT, compreendam a necessidade de avanço em direção a um debate qualificado e que a objetividade prevista em um Estado laico se faça presente e se sobreponha às emoções. A defesa dos direitos humanos é a defesa da vida e, na perspectiva do coletivo, possui extensa e importante pauta a ser tratada com seriedade e serenidade.



Magali do Nascimento Cunha
é jornalista, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo e editora do blog Mídia, Religião e Política (www.midiareligiaopolitica.blogspot.com.br).


Foto: Agência Brasil

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