Paulo Ayres Mattos e "Os justos de Israel" de Mario Vargas Llosa

Gente, o artigo do Vargas Llosa, que é conhecido por suas duras críticas a todas esquerdas latino-americanas, publicado no conhecido ESTADÃO, apresenta uma visão sobre o conflito entre israelenses e palestinos, pouca conhecida entre nós brasileiros, particularmente nos setores evangélicos fundamentalistas. Não precisa concordar com ele. Basta ler e refletir. Paulo Ayres Mattos
Mario Vargas Llosa
03 Julho 2016

Yehuda Saul tem 33 anos, mas parece ter 50. Viveu e vive com tanta intensidade que devora os anos, como os maratonistas devoram os quilômetros.

Nasceu em Jerusalém, em uma família muito religiosa, e é um de dez irmãos. Quando o conheci, há dez anos, ainda usava o quipá. Era um jovem patriota que deve ter se destacado no Exército, pois, ao terminar os três anos obrigatórios, o Tsahal lhe propôs fazer um curso de comandos e ele ficou um ano mais nas fileiras, como sargento. Ao voltar à vida civil, como muitos jovens israelenses, viajou para a Índia, para “fazer” a cabeça. Ali, refletiu, e concluiu que seus compatriotas ignoravam as coisas feias que o Exército fazia nos territórios ocupados, e julgou sua obrigação moral fazê-los saber.
Para isso, Yehuda e um fotógrafo, Miki Kratsman, fundaram em 1.º de março de 2004 a “Breaking the Silence” (Quebrando o Silêncio), uma organização que se dedica a recolher testemunhos de ex-soldados e soldados (cuja identidade mantém em segredo). Em exposições e publicações destinadas a informar o público, em Israel e no exterior, exibem a verdade do que ocorre em todos os territórios palestinos que foram ocupados depois da guerra de 1967 (no próximo ano a ocupação fará meio século).
Textos e vídeos passam, antes de serem exibidos, pela censura militar, pois Yehuda e sua meia centena de colaboradores não querem violar a lei. Os testemunhos recolhidos já são mais de mil.
Até relativamente pouco tempo, graças à democracia que reinava no país para os cidadãos israelenses, Breaking the Silence podia operar sem problemas, ainda que muito criticada pelos setores nacionalistas e religiosos. Mas, desde que assumiu o atual governo - o mais reacionário e ultra da história de Israel -, foi desatada uma campanha duríssima contra os dirigentes da instituição, com acusações de traição e pedidos de que sejam postos fora da lei - no Parlamento, pela boca de ministros e líderes políticos e na imprensa. Nas redes sociais, chovem insultos e ameaças contra os fundadores. Yehuda Shaul não se sente intimidado e não pensa em fazer nenhuma concessão. Diz ser patriota e sionista e estar empenhado no que faz não por motivos políticos, mas morais.
Existe na milenar história judaica uma tradição que nunca foi interrompida: a dos justos. São homens e mulheres que, de quando em quando, surgem nos momentos de transição ou de crise e fazem ouvir sua voz, contra a corrente, indiferentes à impopularidade e aos perigos que correm agindo desse modo, para expor uma verdade ou defender uma causa que a maioria, cega pela propaganda, a paixão e a ignorância, se nega a aceitar. Yehuda Shaul é um deles, em nossos dias. Por sorte, não é o único.
Há a destemida jornalista Amira Hass, que foi viver em Gaza para sofrer na própria carne as misérias dos palestinos e documentá-las dia a dia em suas crônicas no Haaretz. A ela devo uma noite inesquecível que passei, há uns dois anos, na asfixiante e congestionada ratoeira que é a Faixa de Gaza, em casa de um casal de palestinos dedicados à ação social. E também Gideon Levy, colega de Amira, incansável escrevinhador, a quem encontro depois de um bom tempo, sempre batalhando pela justiça com a caneta na mão, ainda que com o ânimo mais contido que o de antes porque a sua volta diminui cada vez mais o número dos defensores da racionalidade, da convivência e da paz e cresce sem trégua o dos fanáticos das verdades únicas e do Grande Israel, que teria, nada menos, que o respaldo de Deus.
Mas nessa viagem conheci outros não menos puros e valentes. Como Hanna Barag, que às 5 da madrugada, no entroncamento de Qalandiya, cheio de grades, câmeras e soldados, mostrou-me a agonia dos trabalhadores palestinos que, mesmo tendo autorização para trabalhar em Jerusalém, são obrigados a esperar horas para poder entrar e ganhar o sustento. Hanna e um grupo de mulheres israelenses se postam a cada madrugada em frente a esses alambrados para denunciar a demora injustificada e protestar contra os abusos cometidos. “Tentamos chegar aos chefes”, disse-me, mostrando dois soldados, “porque esses nem sequer nos ouvem”. Hanna é uma anciã miúda e cheia de rugas, mas em seus olhos claros brilham uma luz e uma decência que cegam.
Também é um justo, embora nem mesmo suspeite disso, o jovem Max Schindler, que conheci em Susiya, uma aldeia miserável das montanhas do sul de Hebron.
É muito tímido e tenho de arrancar a saca-rolha a informação sobre o que faz, rodeado de crianças famintas, nesse lugar fora do mundo ao qual os colonos da vizinhança vêm para cortar as árvores, destruir as colheitas e, às vezes, bater nos moradores sobre cujas poucas casas pesa uma ordem de demolição. É um voluntário que veio viver em Susiya - melhor seria dizer sobreviver - por uns meses e dedica seu tempo a ensinar inglês aos aldeões. “Quero que saibam que existe um outro Israel”, disse-me, mostrando os moradores.
Sim, existe, o dos justos, muitos, embora não tantos para ganhar eleições. Na verdade, há anos só perdem, uma atrás da outra. Mas não se deixam abater pelas derrotas. São médicos e advogados que vão trabalhar nos povoados meio abandonados e defender nos tribunais as vítimas de abusos, ou jornalistas, ou ativistas dos direitos humanos, que registram o assédio e os crimes e os divulgam ao público. Há, por exemplo, uma associação de fotógrafos formada por moças e rapazes muito jovens, que eternizam em imagens todos os horrores da ocupação. Eles me seguem por onde vou e não se importam de andar entre o lixo fedorento e torrar de calor no deserto se puderem documentar com imagens tudo aquilo que o Israel oficial oculta e a gente bem pensante não quer conhecer. Embora a imprensa oficial não publique suas fotos, eles as exibem em pequenas galerias, em painéis de rua, em publicações semiclandestinas.
Quantos são? Milhares, mas não o bastante para retificar esse movimento de opinião pública que empurra cada vez mais Israel para a intransigência, como se o fato de ser a primeira potência militar do Oriente Médio - e, ao que parece, a sexta do mundo - seja garantia de sua segurança.
Eles sabem que não é assim, que, ao contrário, tornar-se um país colonialista, que não quer negociar nem fazer concessões, tem feito com que Israel perca a auréola de prestígio e honra que tinha e o número de seus adversários e críticos, em vez de diminuir, aumente a cada dia.
Dois dias antes de partir, janto com outros dois justos: Amos Oz e David Grossman. São escritores magníficos, velhos amigos e, ambos, incansáveis defensores do diálogo e da paz com os palestinos. Os tempos que enfrentam são difíceis, mas eles não se deixam abater. Brincam, discutem, contam piadas. Dizem que, considerando-se os prós e contras, nenhum deles poderia viver fora de Israel. Gideon Levy e Yehuda Shaul, que estão presentes, se dizem de acordo. Menos mal. Em todos os dias em que estou aqui, é a primeira vez que um grupo de israelenses concorda totalmente com alguma coisa. 
 TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
MARIO VARGAS LLOSA É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA
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Fonte: http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,os-justos-de-israel,10000060646

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